Os fantasmas que me operam



Era um dia fresco de outono e a cidade se alegrava com o cantarolar dos pássaros no parque. O calçadão do bairro envolto por um enorme colchão de folhas secas e pétalas geladas. Enquanto todos caminhavam naquela tarde de domingo, eu me resguardava em meu recinto aconchegante.

Comecei a me questionar sobre as minhas escolhas e sobre o caminho ao qual elas estavam me guiando. Quando se é muito jovem, pouco se sabe sobre si mesmo. Um dia, a gente desperta antes das 7h00 e o nosso humor está radiante, acreditamos então que as manhãs são melhores que as noites e levantar-se cedinho é a melhor maneira de iniciar um bom dia. Outro dia, levantar-se às 7h00 fora um erro rude e o transporte público estava um caos; alguém esbarrou em você e derrubou aquela pasta cheia de atividades; um bêbado vomitou no banco da frente e o odor está insuportável após se misturar com o perfume daquela senhora de vestido laranjinha. 

Foi assim que você descobriu que odeia o clima matinal; que acordar cedo te deixa aborrecido e o sol das 9h00 é na verdade um empecilho na hora de descer do ônibus; que aquele cheiro de café barato na lanchonete da empresa é um tormento e você não suporta mais comer misto quente ao lado do Juliano – aquele cara chato que se senta sempre ao seu lado e só fala de política e futebol –, é tudo temporário e você se dá conta de que já não é mais o mesmo.

É hora de se perguntar por onde anda aquela moça de cabelo castanho que conversava com você o dia todo pelo Whatsapp. O que será que houve com aquele amigo da faculdade que estava sempre na cadeira da frente com um sorriso amarelo nas aulas de Metodologia? De repente, você se pega recordando de uma tarde quente ao lado da Elisa e do Rodrigo, vocês estavam sempre juntos. E aquela social na varanda da Carla? Você bebeu todas e ficou com a irmã da Gisele – a loirinha tímida que tinha uma queda por você –, quem te levou embora foi a Sara, sua melhor amiga, você vomitou no carro do pai dela e ela nem ligou. 

Quando foi que você se tornou tão solitário e vazio? Já ligou para a sua irmã hoje? É aniversário dela e você nem se lembrava. Você tem fobia de ligações e não suporta diálogos automáticos. Você se sente sempre cansado e o tempo é um inimigo invisível que não para de ecoar. É difícil se levantar da cama antes das 11h00 e por isso você prefere empregos noturnos. Você descobre, finalmente, que essa nova versão de você é completamente apaixonada pela visão noturna das estrelas em desalinho e pela névoa cobrindo a lua nos dias frios.

Você sabe que está mudando conforme os dias vêm e vão. Não há nada muito certo sobre você, não se tem mais aquela prepotência da juventude em achar que se sabe de tudo e se conhece perfeitamente bem. Os dias estão mais curtos e você chora mais do que ri, dorme mais do que vive, assiste mais do que lê, sonha mais do que realiza, ouve mais do que fala e, tudo bem, por você, tudo bem. Você só quer estar em paz quando a cidade apagar as luzes e o domingo estiver indo embora.

O fantasma do passado ainda conversa com o seu corpo inerte sobre a cama e as lembranças de quem você já foi ainda estão frescas na sua mente. Há meia dúzia de corpos fantasmagóricos convivendo com o seu novo eu e não há nada mais sufocante para eles do que vê-lo seguir em frente. Possa ser que amanhã você se levante cedo e esbarre com o Juliano e dessa vez ele esteja de camiseta branca e chinelos nos pés. Possa ser que ele tenha deixado a barba crescer e a conversa seja menos casual. Possa ser que ele fale daquele filme novo que entrará em cartaz hoje à noite e seria legal se vocês fossem juntos.

Não importa o que seja, você aguenta qualquer coisa, porque todas essas mudanças o tornaram mais forte. 

2 comentários

  1. "Não há nada muito certo sobre você, não se tem mais aquela prepotência da juventude em achar que se sabe de tudo e se conhece perfeitamente bem. Os dias estão mais curtos e você chora mais do que ri, dorme mais do que vive, assiste mais do que lê, sonha mais do que realiza, ouve mais do que fala e, tudo bem, por você, tudo bem. Você só quer estar em paz quando a cidade apagar as luzes e o domingo estiver indo embora."

    Vou tatuar na testa.
    Texto sensacional, sua poesia é a coisa mais linda de se ler ❤ e os fantasmas são teimosos e difíceis de serem mandados embora.

    Mil beijos

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  2. Oi Rebeca seu blogue é bem reflexivo. Gostei muito . E seu comentário no meu foi lindo. Obrigada. Um abraço.

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