Sobre você e eu e o tempo entre nós


Eu já não me vejo como antes via.

Eu deixei de ser aquele 'eu' de quando você passava por aqui. Deixei de ferver o café segundos antes de ouvir o som da sua buzina. Deixei de conferir o excesso de maquiagem no metal na colher de chá. Deixei de verificar se aquela calcinha era a mesma de antes de ontem e eu havia usado uma cor diferente. Deixei de cerrar as unhas em formato oval, porque você dizia que assim os arranhões marcavam mais. Deixei de usar cinta-liga só para te dar o prazer de passar os lábios famintos por ali. Deixei de limpar a mesa às pressas porque você telefonou de última hora e tinha discutido com o seu pai hoje cedo. Deixei de correr na padaria para comprar aquela torta de nata só por te ouvir dizer que ele não entendia nada sobre ter um sonho e enquanto isso você devorava uma fatia atrás de outra, dizendo "é esse recheio que me engorda, não gosto do recheio" e no final você lambia os dedos sujos de glacê. Deixei de esconder as piolas de cigarro num copo de geleia atrás do jarro de mesa para não ouvir você dizer que eu ando fumando muito e esse vício desgraçado estava acabando comigo. Deixei de escrever bilhetes e enfiá-los no bolso da jaqueta de couro que você pendurava no basculante da cozinha. Deixei de dormir e acordar sorrindo porque seu corpo partia mas as lembranças me devoravam em sonhos e flashes de memórias recentes. Deixei de usar aquele perfume de flor-de-cerejeira às sextas-feiras à espera de uma visita inesperada. Deixei de roer as unhas relembrando das discussões após bebermos excessivamente com estranhos num bar de avenina. Deixei de usar preto nos jantares e idas ao teatro. Deixei de cortar o cabelo daquele modelo curto que você dizia exaltar os meus traços e realçar-me as íris achocolatadas. Deixei você e deixei antigos hábitos.

Você nunca soube. 

Eu nunca gostei de café porque ele me causa insônia e aquela maldita buzina assusta o meu cachorro. Eu nunca me senti bem usando maquiagem e aquele batom coral era o que eu mais detestava. Calcinha preta me aquece em demasia e eu tinha que lavá-las o tempo inteiro porque aquilo te excitava. Eu nunca gostei de unha comprida e sexo violento nunca foi a minha praia: eu te dava de quatro porque você gostava. Cinta-liga me dá estria e eu tentava disfarçar que as tinha por causa do jeans apertado só para te ver de olhos alagados ao se deliciar com ela. Eu nunca achei que você estivesse certo em recusar as ofertas de emprego do seu pai e maltratá-lo daquela forma é como ser um mimado mal agradecido. O recheio da torta só tinha limão e nata: você engordava porque duas fatias não bastava. Eu nunca tive um vício maior do que você e aqueles cigarros vagabundos não eram quase nada comparados ao tremelicar que eu sentia quando não o via. Eu nunca disse nada mas escrevia aqueles bilhetes só para você não esquecer que me tinha nas mãos e não ter sido agradecida me fez partir. As insônias sumiram desde que você se foi e eu nunca gostei de sorrir feito uma menina enamorada. Eu nunca gostei de me embelezar tanto para te esperar e fingir que não me incomodava com os seus atrasos. Eu nunca quis contrariar mas era você quem não sabia beber e cismava que o garçom estava de olho nos meus peitos. Eu nunca reclamei do teatro porque você amava aquele espetáculo cafona mas eu preferia um cinema em casa. Eu nunca deixei crescer mas aquele chanel improvisado aumentava as minhas bochechas e eu me sentia como uma garota do primário. Eu nunca quis ficar sem você, mas prefiro ficar comigo.

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